A atual estrutura do Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB), que comemora 26 anos nesta terça-feira, 9, e a potência paralímpica em que o Brasil se tornou nas últimas décadas só foram marcos possíveis de serem alcançados graças aos atletas que disputaram de maneira independente os Jogos Paralímpicos antes da fundação do Comitê e que foram pioneiros do Movimento Paralímpico nacional.
É o que retrata a tese de doutorado “Esporte Paralímpico Brasileiro: vozes, histórias e memórias de atletas medalhistas (1976 a 1992)”, realizada pela professora Michelle Barreto, 37 anos, mineira de Lavras e graduada em Educação Física.
O trabalho de Michelle retrata a trajetória dos atletas medalhistas em Jogos antes da fundação do CPB, na antiga sede da ANDEF (Associação Niteroiense dos Deficientes Físicos), em Niterói. A entidade foi uma das mais importantes na luta pelos direitos da pessoa com deficiência e na fundação de uma cultura esportiva no país, e considerada até os dias atuais uma das maiores entidades de pessoas com deficiência do Brasil e do mundo.
Além disso, a primeira sede do CPB, em 1995, foi constituída nas dependências da Andef, em Niterói.
O trabalho acadêmico, que exigiu viagem pelo Brasil por três meses e foi constituído por história oral, metodologia científica baseada nas informações oriundas de memórias das pessoas e que são cruzadas com documentos oficiais e registros das competições, reúne histórias de 23 atletas paralímpicos do país que foram medalhistas em Jogos antes de 1995 – o total é 27, porém, quatro já haviam falecido no momento da pesquisa.
O estudo mostra que, sem um órgão responsável pelo paradesporto e com apenas algumas instituições que ofereciam algum apoio, os atletas paralímpicos enfrentaram situações muito adversas para poderem participar de uma edição de Jogos Paralímpicos até o surgimento do Comitê.
A primeira participação brasileira nos Jogos Paralímpicos aconteceu em 1972, na cidade de Heidelberg (Alemanha Ocidental). Com 20 atletas na delegação, o Brasil disputou provas no tiro com arco, no atletismo, na natação e no basquete em cadeira de rodas, mas não conquistou nenhuma medalha.
“A primeira medalha paralímpica brasileira na história só aconteceu em 1976, porém, por um acaso. Robson Sampaio de Almeida e Luiz Carlos da Costa relataram que foram para os Jogos de Toronto para competir pelo basquete em cadeira de rodas. No entanto, chegando lá, como não havia um rigor com classificação e inscrição como é hoje, eles quiseram participar pelo Lawn Bowls, modalidade semelhante à bocha, praticada na grama e que sequer existia no Brasil na época. Eles pegaram um kit emprestado para jogar e conquistaram a medalha de prata”, lembra Michelle como um dos fatos mais curiosos do seu doutorado.
Ser um atleta paralímpico entre os anos 70 e 90 era conviver com a falta de investimento e com condições inadequadas de treino. Os materiais e espaços utilizados na época eram, em sua maioria, doações das modalidades olímpicas. Até 1988, a delegação brasileira paralímpica não tinha sequer uniforme oficial e disputava os Jogos com roupas emprestadas de outras entidades, como a CBF (Confederação Brasileira de Futebol) e da CBV (Confederação Brasileira de Vôlei).
“Naquela época, as cadeiras de rodas dos atletas do Brasil pesavam cerca de 15 quilos enquanto os equipamentos dos adversários de outros países pesavam seis. Além disso, havia muita desorganização. O atleta recebia a passagem a poucos dias da viagem com saída de São Paulo, porém, ele era do interior de outro estado. Então, tudo isso prejudicava o desempenho deles nos Jogos”, explica Michelle.
A autora ainda acrescenta que, apesar das muitas dificuldades financeiras, alguns atletas medalhistas paralímpicos do país tinham um trabalho paralelo ao esporte, outros eram aposentados, enquanto uns sobreviviam com o apoio familiar.
“Um atleta cadeirante relatou certa vez que a empresa em que trabalhava aceitou em patrocinar a sua viagem para disputar os Jogos Paralímpicos, porém, os donos pediram para o nome da empresa não ser divulgado, pois não queriam que a marca fosse associada a uma pessoa com deficiência”, completou.
Ao todo, foram 200 atletas paralímpicos que disputaram os Jogos pelo Brasil no período pré-CPB, entre 1972 e 1992.
A importância das instituições
A tese de doutorado da professora Michelle Barreto traz ainda como algumas instituições e associações espalhadas por várias cidades do país tiveram um papel fundamental no desenvolvimento do esporte paralímpico antes da fundação do CPB.
Além do trabalho de reabilitação e educação que já realizavam com as pessoas com deficiência, essas instituições foram muito importantes no processo de iniciação esportiva de todos os atletas paralímpicos que viriam a conquistar uma medalha em Jogos antes de 1995.
Sete atletas medalhistas foram formados no Rio de Janeiro, oriundos do Clube do Otimismo, da Sociedade Amigos do Deficiente Físico (Sadef), do Centro de Amparo ao Incapacitado Físico (Caif), do Clube do Paraplégico do Rio de Janeiro, e da Polícia Militar.
Outros medalhistas surgiram da Associação dos Deficientes Visuais do Triângulo Mineiro, da Associação dos Deficientes Visuais de Belo Horizonte (Adevibel), da Associação Campo-grandense Beneficente de Reabilitação (ACBR), da Associação de Deficiente Físico do Estado de Goiás (ADFEGO), do Jóquei Clube de Goiás, da Associação de Deficientes Motores de Recife, da Associação Desportiva de Deficiente Físico de Pernambuco, e da Associação Desportiva Deficiente Físico (ADDF), de Natal.
Já da região Sul do país, os campeões paralímpicos foram introduzidos no esporte por meio da Universidade Estadual de Maringá, da Associação dos Deficientes Visuais do Paraná (ADEVIPAR), da Sociedade Louis Braille (SOLB), e da Associação Joinvilense para Integração dos Deficientes Visuais (AJIDEVI).
Outras instituições também foram muito relevantes no período, como a Associação Niteroiense dos Deficientes Físicos (Andef), fundada em 1981 e considerada até os dias atuais uma das maiores entidades de pessoas com deficiência do Brasil e do mundo. Foi dentro da entidade que surgiu a prática do futebol para amputados, modalidade que o país se tornaria uma potência posteriormente, apesar de não fazer parte do programa dos Jogos Paralímpicos.
Brasil com duas delegações
O estudo ainda aponta que os registros do começo do esporte paralímpico no Brasil são relacionados ao final da década de 1950, quando Robson Sampaio, em 1958, fundou o Clube do Otimismo no Rio de Janeiro, e Sérgio Seraphin Del Grande criou, no mesmo ano, o Clube dos Paraplégicos de São Paulo. Ambos tinham como principal atividade o basquete em cadeira de rodas.
A partir dessas ações, o esporte paralímpico começou a se desenvolver no país. Porém, um fato curioso entre os dois clubes em 1975, alavancou a organização do paradesporto nacional, mostra a tese de doutorado.
Nos Jogos Pan-americanos para paraplégicos do México daquele ano, uma falha de comunicação entre as equipes de São Paulo (Clube dos Paraplégicos) e do Rio de Janeiro (Clube do Otimismo) fez com que o Brasil fosse com duas delegações para aquele evento esportivo.
Esse acontecimento obrigou a International Stoke Mandeville Games Federation (entidade que daria origem a atual Federação Internacional do Esporte para Amputados e Cadeirantes – IWAS, em inglês) a exigir do Brasil uma única entidade de representatividade nacional.